“Usar ProtocolDAOs para impulsionar a inovação é como usar educação sexual apenas para abstinência: uma campanha de moralidade irrealista e ineficaz para auto-aversão e vergonha”.

Se você não pegou a referência, o título e o primeiro parágrafo desse texto são citações adaptadas do famoso TDD is dead, de David Hansson (criador de Ruby on Rails).

As DAOs morreram

Antes de qualquer coisa, gostaria de dar um aviso: esse texto não tem o objetivo de avaliar a importância ou validade das DAOs dentro da nova economia e/ou da Web3, mas sim, questionar a habilidade de ProtocolDAOs entregarem inovação e crescimento de forma constante. Existem vários tipos de DAOs, como as relacionadas à investimento, coletivos, colecionadores, etc. Esse texto trata apenas de ProtocolDAOs, como por exemplo: Uniswap, Compound, MakerDAO, Gitcoin, dentre tantos outros.

Dito isso, precisamos definir o que é uma ProtocolDAO. A palavra “Protocolo” se refere a um conjunto de regras e procedimentos estabelecidos para governar o funcionamento de uma rede blockchain ou dApp. Essas regras e procedimentos são registradas em um código que automatiza o serviço do Protocolo, gerando – ou tentando gerar – algum Efeito de Rede.

Para simplificar a definição de Efeito de Rede, vamos pegar o exemplo da Uniswap. De um lado temos pessoas querendo trocar um token por outro, e do outro lado temos os liquidity providers que têm os dois tokens necessários para que a troca seja feita. Quanto mais pessoas chegam na Uniswap querendo trocar tokens, melhor é para os liquidity providers pois ganharão mais taxas pelas trocas; e quanto mais liquidity providers disponibilizam tokens para serem trocados, melhor é para quem quer trocá-los pois terão maior variedade de tokens e menor volatilidade de preços. Essa correlação gera um efeito positivo no qual o serviço prestado melhora à medida que há mais pessoas usando. O famoso e perseguido Efeito de Rede.

A palavra “DAO” por sua vez se refere a como o protocolo é gerenciado. No caso, por uma Organização Autônoma Descentralizada. Essas organizações são grupos de pessoas que exercem algum poder de decisão no funcionamento do protocolo por meio de tokens de governança. Em outras palavras, as organizações emitem tokens, e somente quem tem esses tokens participa nas decisões que alteram o Protocolo.

No caso da Uniswap o token criado foi o UNI, e quem tem UNI pode acessar o portal de governança para criar propostas para melhorar o Uniswap e votar nas propostas vigentes. As propostas podem criar novas funcionalidades, alterar parâmetros (quanto é a fee cobrada, por exemplo), e onde gastar o dinheiro do tesouro da Uniswap (contratações de desenvolvedores, produção de eventos, melhoria de infraestrutura, etc). Um token de governança pode acumular outras utilidades além da governança – e com isso ter um valor de mercado ainda maior – como por exemplo: acessar serviços premiums ou prover liquidez para recebimento de taxas (veTokens).

Talvez nem todos definam ProtocolDAOs da mesma forma que fizemos aqui, mas agora que estamos na mesma página, vamos em frente!

Como eu conheci as DAOs

A primeira vez que eu ouvi falar sobre DAOs, em 2017, eu fiquei completamente encantado. Nunca tinha pensado num modelo que possibilitasse colocar o poder de decisão na mão das pessoas que usam os serviços. Para mim não havia dúvidas, esse era “o futuro das organizações”. Por um bom tempo eu estive convicto nessa ideia. Até que numa conversa despretensiosa, eu fui questionado:

Mas você já trabalhou em alguma DAO? Já viu a bagunça que é lá dentro?

Essa pergunta mexeu comigo, até porque naquela época eu realmente não fazia ideia de como era trabalhar em uma DAO. E se você está nessa mesma posição agora, eu vou te dar uma prévia bem breve:

Imagina que você é um business developer dentro da ImaginaryDAO. Você trabalha 40 horas por semana e está em vias de fechar uma parceria que você acredita que pode trazer uma grande base de usuários para o seu protocolo. Para fechar essa parceria, seguindo o processo padrão de uma organização descentralizada, você precisa:

  1. Escrever uma proposta explicando para os token holders por que a parceria é algo bom para o Protocolo;
  2. Esperar os token holders lerem e discutirem suas opiniões a respeito da proposta;
  3. Abrir uma votação para que os token holders escolham se aprovam ou não a parceria;
  4. Esperar o tempo estipulado pela DAO para que o máximo de pessoas possa votar;
  5. Finalmente, apenas com sua proposta aprovada, você pode então fechar a parceria.
  • Caso a proposta não seja aprovada, você pode desistir da parceria, ou elaborar uma nova proposta e passar por todo o processo de aprovação novamente.

Difícil né? Em média, esse processo demora entre 2 a 3 semanas, quando a proposta é aprovada de primeira!

Depois de ver tudo isso de perto, resolvi mergulhar de cabeça para entender profundamente o funcionamento das DAOs, enquanto liderava minha própria ProtocolDAO em sua rodada de $3.5m captados em 2022. Foram algumas centenas de horas estudando protocolos como Uniswap, Balancer, Synthetix, Yearn e YGG. Nesse processo, contei com a ajuda valiosa de colegas que já haviam trabalhado na MakerDAO, Solana e Gitcoin.

Aqui estão minhas conclusões…

1. ProtocolDAOs são burocráticas

Eu te dei o exemplo de como é difícil fechar parcerias numa DAO, mas isso se aplica a várias outras atividades, como: lançar uma campanha de marketing, criar novas features pro produto, definir o propósito da empresa, contratar advogados, contratar auditoria, contratar membros para o time, decidir salários desses membros, demissões, e por aí vai.

Isso sem considerar a – grande – possibilidade de uma proposta não ser aprovada. Token holders podem decidir não acatar ou simplesmente podem não se engajar na leitura ou votação da proposta. Nesses casos a proposta deve ser refeita, e todo o processo de aprovação se reinicia, fazendo com que o trabalho demore ainda mais para ser executado.

Toda essa burocracia é resultado da imensa dificuldade de se coordenar tantas opiniões diferentes. A principal ferramenta utilizada para isso são os fóruns, onde normalmente os token holders discutem suas ideias. Esse é o ambiente mais efervescente e mais caótico de uma DAO. Estamos falando de um ambiente aberto, onde pessoas de todos os níveis técnicos e com os mais variados interesses tentam chegar a um acordo.

O mais frustrante é pensar que toda essa burocracia acaba tendo pouca relevância, já que a maioria das DAOs está nas mãos de baleias (pessoas que possuem grandes quantidades de tokens de determinado protocolo), o que faz com que as decisões atendam muito mais aos interesses de investidores do que aos interesses de quem usa o protocolo. Mas isso é assunto para um outro texto.

2. ProtocolDAOs tomam decisões top-down

Após a decisão da votação, os trabalhadores da DAO, que muitas vezes se abstêm de votar, simplesmente têm que executar o que foi decidido. É um processo totalmente top-down. O que é decidido é lei. E todos sabemos que quando a força de trabalho não tem voz, ela tende a se tornar apática.

Uma força de trabalho apática, não é criativa. E sem criatividade, não existe inovação.

3. ProtocolDAOs são políticas

Conforme as DAOs foram crescendo, novos desafios de governança foram surgindo, e consequentemente novos processos de organização tiveram que ser implementados.

Foi o que aconteceu na MakerDAO. Por ter crescido tanto, chegou um momento em que os token holders não conseguiam mais acompanhar as propostas feitas pelos colaboradores, e decidiram então criar um novo cargo: delegados. A ideia funcionou tão bem que logo foi adotada por várias outras ProtocolDAOs.

Token holders delegam os seus tokens para delegados, que fazem uso desses tokens para voltarem nas propostas. Um delegado tem o poder de voto de todos os tokens que foram delegados a ele, e em alguns casos pode até receber salário pelo trabalho de votar pelos token holders.

Ou seja, uma pessoa é paga para tomar decisões em nome de um grupo de pessoas que confiaram seus votos a ela. Percebeu alguma semelhança com o trabalho de um deputado? Se sim, então você entendeu direitinho.

Guardadas as devidas proporções, delegados são como deputados. E todos sabemos que deputados precisam fazer jogo político com apoiadores e opositores para tentar se manter no cargo a cada 4 anos. Porém, o cargo de um delegado em uma ProtocolDAO não dura 4 anos, na verdade, ele pode perder o cargo a qualquer momento se os token holders decidirem não o apoiarem mais. Essa instabilidade faz com que o jogo político seja ainda mais intenso lá dentro.

Esse texto mostra uma votação super polêmica da MakerDAO e a mudança de apoio dos delegados à medida que eles debatiam sobre o assunto.

Resumindo: ProtocolDAOs são burocráticas, com decisões top-down e políticas

Eu não sei você, mas eu particularmente não me sinto confortável em trabalhar em um ambiente burocrático, político e com decisões top-down. E definitivamente não são essas as características que eu busco para minha empresa, a Ribon.

Disclaimer: Eu sou fã de absolutamente todos os protocolos que citei acima, e sou token holder de praticamente todos eles. Justamente por isso me sinto mais confortável em apontar problemas estruturais em suas organizações, e faço isso com a única intenção de buscar soluções para esses problemas, evitando que eles sejam vividos por outras organizações, como por exemplo a Ribon.

Apesar de todos os seus problemas citados acima, as DAOs trouxeram à tona uma inovação muito importante: o token de governança.

O modelo de token de governança é especialmente interessante, pois se criado de forma correta, suas funcionalidades fazem com que ele provavelmente não se enquadre como uma security, e portanto não precise ser regulado pela SEC (Securities and Exchange Commission).

Esse texto da Variant explica como os tokens de governança se assemelham mais a uma ação de cooperativa, um tipo de ação que foi julgado como não security pelo governo americano. Essa decisão se deu pois, ao passar pelo teste de Howey, mais especificamente na pergunta “ao comprar a ação, você está esperando um lucro pelo trabalho de outros?”a resposta para ações de cooperativa foi não, porque os “outros” neste caso era todo mundo (inclusive o próprio dono da ação).

Porém, essa menor carga regulatória traz perigos importantes de serem destacados. Muitos projetos na Web3 estão sendo forçadamente enquadrados no modelo de uma ProtocolDAO somente para viabilizar o lançamento de um token de governança. Me assusta ver founders perceberem que suas organizações estão caóticas internamente e mesmo assim optarem por esse modelo apenas para evitar regulação. A consequência disso é que o projeto acaba morrendo por dentro e sofrendo uma rápida desvalorização de seus tokens.

A boa notícia é que alguns dos melhores pensadores de cripto que temos na atualidade estão tentando propor melhorias no processo de governança para diminuir as burocracias, politicagens e decisões top-down dentro das DAOs. Posso citar por exemplo essa proposta super interessante que o Hasu fez para a Maker, ou as diversas outras ideias que tive o prazer de ouvir presencialmente nas palestras do Devcon Bogotá 2022.

A questão é que, por definição, DAOs necessitam de consenso, e consenso é incompatível com inovação, pois o consenso exige burocracia, e inovação exige agilidade para testar e errar o mais rápido possível. Pensando nisso, eu chego à conclusão que:

Talvez, esses sejam problemas inerentes à organizações descentralizadas.

O texto Disagreeing and Committing, de Mark Schwartz, explica muito bem como um ambiente de inovação precisa que pessoas tenham liberdade para tomar decisões mesmo em discordância.

Aí você pode me perguntar: “mas inovação é algo realmente necessário para uma ProtocolDAO?”

Bem, protocolos são tecnologias, e nos tempos atuais, tecnologias precisam estar em rápida e constante renovação para se manterem úteis para a sociedade. Isso significa que qualquer organização que gerencia uma tecnologia necessariamente precisa ter um alto nível de inovação. E se estamos falando de um modelo de gerenciamento burocrático e baseado em consenso, fica fácil concluirmos que esse modelo não promove inovação.

Por isso o título provocativo “As DAOs morreram”.

Apesar de todos esses problemas que refletimos aqui, não podemos negar que DAO é um modelo revolucionário que traz soluções para diversos problemas que vemos em modelos de empresas centralizadas com fins lucrativos.

ProtocolDAOs não se corrompem em prol de levar mais lucro para acionistas, como é o caso do Facebook, Celsius, 3 Arrows Capital e tantas outras empresas do mercado tradicional.

Acredito que, se aprendermos com os erros do passado, as DAOs podem ser sim uma boa solução de governança. Na verdade, podemos dizer que as DAOs já representam uma enorme evolução se comparada a outras organizações como governos democráticos, igrejas e exércitos. Especialmente porque o poder de decisão se tornou muito mais acessível com as DAOs.

Mas a pergunta que fica é: qual seria o modelo ideal para o gerenciamento de protocolos que necessitam de inovação?

A resposta para essa pergunta está na única característica das DAOs que não discorremos nesse texto: autônoma.

Existe um modelo chamado Organizações Teal que justamente propõe uma evolução do modelo descentralizado para o modelo totalmente autônomo de gestão. A adoção de pods (times autônomos), que vem se tornando uma prática recorrente em ProtocolDAOs, é um exemplo de prática trazida das Organizações Teal. De forma proposital ou não, já é possível assistir a comunidade cripto adotando características desse modelo.

Na parte 2 desse texto nós vamos mergulhar em várias outras características desse modelo e entender qual é a conexão entre ProtocolDAOs e Organizações Teal.

Te vejo lá!

Obs 1: Quero fazer um agradecimento especial ao Danilo Borges, meu principal colega de trabalho nestes últimos meses. Gostaria também de agradecer a outras pessoas que, sem elas, as ideias deste texto não existiriam: Moriah Rickli, Duda Barbirato, Gary Latta, Yuan Han Li, Alp Ergin e Bailey Tan.

Obs 2: As informações contidas neste artigo não pretendem ser e não constituem recomendação financeira, recomendação de investimento ou recomendação jurídica.